Dona Inezita, aos 78 anos de idade, continuava acordando todo dia antes das 06h da manhã. Ficara viúva aos 60 anos, e com os quatro filhos e duas filhas com as vidas encaminhadas, resolveu viver sozinha desde então, apesar dos protestos da família.
- Eu sei me virar! Vão cuidar da vida de vocês que eu consigo viver sozinha com minhas plantas, meus gatos e as lembranças do Alfredo.
Depois de muita insistência dona Inezita concordou que uma das netas, a Patrícia, com a qual tinha mais afinidades, fosse morar com ela na casa espaçosa, localizada numa área bem central de São Luís. Com o correr do tempo a convivência elevou avó e neta para o patamar de confidentes.
Apesar da urbanização ao longo dos anos, a casa onde as duas moravam e trocavam segredos continuava lembrando uma casa de campo, com muitas árvores e canteiros elevados de hortaliças, um quadro marcante para as poucas visitas. Invisível aos olhos dos frequentadores havia um baú de madeira, um mundo da dona Inezita, preenchido principalmente com a ajuda de Patrícia.
Naquele Domingo, como costumava ocorrer uma vez por mês, dona Inezita levantou e foi separar as tralhas que levariam para um churrasco num sítio da família, no distrito do Maracanã.
Às 09h em ponto o Joaquim, motorista contratado pela família, buzinou no portão. – Vai abrir, minha filha, gritou para Patrícia, que saiu numa disparada para abrir o portão, antevendo muito mais do que o Joaquim.
- Você veio mesmo, Felipe! Gritou eufórica ao ver que o seu “ficante”, como se referia a ele, estava no banco do carona. O Joaquim nem teve tempo de dar bom dia e dona Inezita já lançou um olhar de reprovação, olhou o relógio da parede, congelado havia dez anos marcando 10:30, e emendou: - Isso são horas, seu irresponsável ?
O Joaquim, já acostumado com essa reação, repetida invariavelmente quando ia buscar dona Inezita, esboçou um sorriso e disse:
- Minha patroa, a ordem foi para eu chegar às 09h em ponto, e eu cheguei.
- Hã ? Lançou a interjeição e gritou: vamos, vamos... o que estão fazendo aí parados ?
Tudo arrumado, entraram no carro, dona Inezita no banco do carona e Patrícia e o ficante no banco de trás, apressados em trocar amassos antes do carro arrancar.
Olhando fixamente para as coxas do Joaquim, dona Inezita soltou um suspiro, ornado pela frase: - Ai, eu não aguento!
Hã ? Fingiu espantar-se o Joaquim, já acostumado com esses suspiros de dona Inezita sempre que ela sentava no banco do carona. O que viria depois o Joaquim também já sabia, mas esperou dona Inezita dizer.
- Vamos passar na PRF, meu filho?
- Sim, sim, dona Inezita, pela BR é o nosso caminho. Vamos passar.
Nos anos 1980 o fluxo de veículos saindo de São Luís pela BR 135 era pequeno, e sem muitas fiscalizações para fazer, os policiais rodoviários costumavam parar veículos para dar pequenas orientações e até para um papo camarada. Eram outros tempos.
Era esse o ambiente que fazia a dona Inezita ter a certeza de que seriam parados naquele Domingo do churrasco.
Já sabendo da mania de dona Inezita, Joaquim diminuiu a velocidade ao ponto de passar em frente ao posto da PRF como se estivesse num cortejo. Ninguém veio de lá.
- Oxi! Virou-se para o Joaquim: - Será que o preguiçoso do Peçanha não veio trabalhar hoje ?
- Veio, dona Inezita. Já já ele aparece.
Como para não correr risco de que o policial rodoviário não viesse, disse para o Joaquim estacionar próximo aos cones e desceu, fingindo examinar o calibre dos pneus. Olhou de soslaio e percebeu o Peçanha, imenso como era, saindo do posto com seu andar vagaroso. Entrou no carro ligeiro, e aguardou a abordagem. No banco traseiro Patrícia e o ficante soltavam risinhos. – Essa dona Inezita! Essa minha vozinha!
Dona Inezita deu bom dia antes do Peçanha, e perguntou:
- E hoje, seu Peçanha, o senhor vai me dizer onde eu consigo a linguiça ? No banco traseiro agora o riso foi frouxo.
- Dona Inezita, eu até queria ajudar, mas realmente eu não sei.
- O senhor não ajuda mesmo, né? Vou contar para o Veríssimo !
De tanto ouvir essas ameaças o Peçanha já se divertia, e sempre pedia para dona Inezita não fazer aquilo, dando veracidade a essa fantasia. Dessa vez, ao ouvir a ameaça: “Vou contar para o Veríssimo !”, sorriu e perguntou:
- A senhora vai escrever um conto ?
- Hã ? O que ? Virou a cabeça para o banco traseiro, olhou para a Patrícia ao mesmo tempo em que girava o dedo indicador na direção da orelha direita, e disse: - Esse guarda é meio doido!
Patrícia gargalhou muito lembrando dessa cena, dez anos depois do falecimento da avó. Pensou em abrir o baú, mas lembrou do pacto que a família fez de deixar o baú como uma cápsula do tempo, para ser aberto cem anos após a morte.
Começou a recordar do choque que levou ao ouvir a primeira confidência da avó.
- Minha filha, mulher não confia em outra, mas vou te contar um segredo: depois da morte do Alfredo a minha razão para viver foi o Veríssimo. Acho que até antes do Alfredo morrer, mas essa é uma dúvida que carrego.
- Quem foi ele, vó?
- Isso eu não posso dizer. Só sei que tu és a única pessoa que pode me ajudar. Posso confiar?
- Claro, minha vó! Tudo que eu puder!
Com a lista de itens na mão, e com os arrepios da adolescência, Patrícia saiu em busca do que a avó queria.
Dez anos depois da morte da avó, lembrava com precisão os detalhes da primeira entrega dos itens desejados: um par de algemas, um cassetete, uma calça cáqui, um cinturão de couro e um par de botas. O quepe e o distintivo da PRF vieram algum tempo depois. Patrícia teve que subornar o Peçanha para conseguir esses itens que ele não usava mais. Os últimos itens foram os brinquedos adultos, que só chegaram quando Patrícia fez 21 anos e teve coragem para entrar num sex shop. Ao fazer a primeira entrega Patrícia arriscou-se a perguntar mais uma vez: - Quem foi o Veríssimo, vó ? Dessa vez a resposta veio ornada com um risinho, acompanhado da frase: curiosidade matou a gata!
Curiosa, mas confidente, Patrícia nunca mais perguntou sobre o Veríssimo. No leito de morte, dona Inezita pediu para falar em segredo com a neta. Com a voz já quase sumindo, disse: - Patrícia, minha filha, tu não sabes o Veríssimo ?
- Sim, sim, vó, a senhora falava dele a todo o tempo, mas nunca me disse quem foi.
- Pois é, minha filha. Vou dizer agora: o Veríssimo é um segredo que está guardado no fundo do baú. Não diz para ninguém, senão eu vou contar para o Veríssimo! As duas riram abraçadas e dona Inezita fechou os olhos.
Paulo Madeira, 31 de Agosto de 2025.
Paulo Madeira é juiz no Amapá. É graduado pela Universidade Federal do Maranhão e ingressou na magistratura em 1996.
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