O Curiaú nasceu da liberdade. Ali, coração verde do Amapá, homens e mulheres que fugiram das senzalas fincaram, ainda no século XVIII, as primeiras raízes da resistência negra.
Hoje, séculos depois, seus descendentes enfrentam uma nova batalha, não contra correntes, mas contra a ambição pela terra, que chega com papéis, tratores e sobrenomes que a própria história local não sabe pronunciar.
Do Curiaú vieram histórias, tambores e famílias que moldaram a cultura do Amapá. Mas em outubro de 2025, o som dos tambores foi abafado por ordens judiciais e tratores.

Como capitães do mato, os seguranças vigiam à espreita. A diferença é que agora não caçam quem foge, eles impedem quem tenta voltar.
Uma reintegração de posse realizada no dia 7, dentro da área conhecida como Taba Branca, deixou marcas profundas. Segundo o agricultor e líder quilombola Mateus Ramos da Costa, de 76 anos, casas foram demolidas e animais ficaram presos em áreas cercadas, sem comida, à espera de socorro.
“Não é um pedido de confronto, é um apelo pela vida, pela justiça e pela dignidade”, escreveu Mateus em sua carta pública, endereçada ao Conselho Nacional de Justiça, ao MP-AP, à Defensoria Pública e a órgãos ambientais
Como uma decisão judicial virou conflito de terras no Curiaú
De acordo com os quilombolas, a ação teria sido embasada em uma decisão judicial de 2017 que determinava a reintegração de posse em uma área de apenas 1 hectare, localizada a três quilômetros dali, sem moradias ou ocupação humana.
“Agora estão usando essa decisão antiga, de um pedaço de ilha, para tentar desocupar mais de 300 hectares de área onde vivem famílias há mais de 70 anos”, denuncia Márcio Costa, morador da Taba Branca.
O processo, que tramita na 5ª Vara do Juizado Especial Cível de Macapá, é movido por José Ferreira Bastos Monteiro, Keila Banha Utzig e Karla Christiani Backer. O documento judicial confirma que o mandado de reintegração de posse está “em fase de cumprimento”, com apoio policial autorizado
Quando o progresso tem o rosto do agronegócio
O Curiaú, que sempre sobreviveu de agricultura familiar e do extrativismo, agora vê o avanço de novas cercas. Moradores relatam que pessoas de fora, com “sobrenomes difíceis”, têm chegado com documentos e seguranças armados. “Vieram de longe e querem tirar o lar de quem nasceu aqui”, desabafa um ancião da comunidade.
Entre a poeira levantada pelas máquinas e o silêncio das autoridades, cresce o medo de que a luta dos antigos volte a se repetir, desta vez contra o poder econômico.
A lei, a terra e o direito à memória
O apelo dos quilombolas cita a Constituição Federal, o Artigo 68 do ADCT e o Decreto 4.887/2003, que reconhecem o direito das comunidades quilombolas ao território e à preservação cultural. Eles pedem investigação do CNJ, intervenção do TJAP e acompanhamento do Ministério Público.

“Clamamos às autoridades e à sociedade brasileira: não deixem morrer nossos animais, nossa terra e nossa dignidade”, diz o trecho final da carta de Mateus.
Mais que terra, um símbolo
A luta no Curiaú é mais do que uma disputa por hectares, é a tentativa de manter viva uma herança coletiva. Ali, cada roçado é uma página da história da resistência negra no Amapá. E quando o território é ameaçado, o que se tenta arrancar não é só o chão, mas também a memória de um povo.
Nota do De Bubuia
O espaço segue aberto para manifestação das partes citadas no processo, incluindo os autores da ação e seus representantes legais.
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